sexta-feira, 24 de abril de 2009

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados,
amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade

As coisas que começam no tempo

- Onde tu andava?
- Por aí.
- Mas é tão tarde...
- Também acho.
- Então porque não veio para casa dormir cedo?
- Porque é tarde.
- ?
- Tarde para nós, entenda.
- Como assim? Tá dizendo que vamos terminar?
- É...
- Covarde.
- Peraí! Está sendo duro para mim...
- Duro? Tu és um molengão, isso sim!
- Agora quem não entende sou eu.
- Nunca encarou nada de frente. E vem falar em dureza, que está sendo difícil acabar.
- Pensei muito. Não queria te magoar...
- O que me magoa é essa tua falta de vontade para encarar as coisas de frente.
- Deveria ter vindo logo aqui e brigado, então?
- Não. Deveria ter sido homem para resolver o problema.

Virou as costas e foi embora, ela. Faz 17 anos, três meses e sete dias. E ontem ele a viu de novo.

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Um dia entenderemos o amor como algo constante. Um tipo de coisa que não nasce de casas bonitas ou dos apartamentos mais altos, acredito. Nunca nem ouvi falar que o amor gostasse desse tipo de construção, sei lá. Ele deve mesmo ser feito de sentimentos que não se petrificam na ausência, ou coisa parecida, acho.

Um dia desses, desejo reconhecer o amor sem questionamentos. Quero implantar um coração que há de separar as paixões dos amores duradouros, mais profundos. E nesse dia, nos veremos de novo.

Até lá, presumo que amaremos à distância coisas que já fomos.

Ele e ela

Não importa muito para onde vai, desde que sempre ande - ele acha.

A vida te sopra como o vento, ela pensa. E tem medo que te cegue a beleza do caminho

Uso óculos, ele diz.

Num beijo, concordam.

Tudo o que vai

Viu pela primeira vez a luz das laternas do carro dela acenderem como despedida. Não abanou, nem ela. Pensou no que tinha, no que queria, no que precisava. E nela que ia.

Viu a vida atravessada na garganta, uma dor que era ausência.

- Se é ausência, não é nada - disse.

E nada seria, então, até que de novo se encontrasse tentando crescer. "Queria tanto que tivesse dado certo", pensou, mas ele mesmo só dava certo quando puxado pelo braço.

Agora, estava sozinho e cuidando de si.

Fazendo por si.

Até que o carro dela engatou marcha ré.