domingo, 27 de julho de 2008

O Gambá - I

Tem um gambá morando no forro da minha casa.

Pensei que fossem ratos, mas ratos não me suportariam. Então é um gambá.

Sei disso porque gambás solitários se aproximam da gente. E, apesar do mau-cheiro, o considero um amigo. Tenho amigos mais mau-cheirosos do que ele, de certeza, uns três.

O curioso disso é que o gambá se parece comigo. Vive só de noite, alimenta-se do que lhe convém e, vez ou outra, não volta para casa. O chato é que, sem querer, ele é minha concorrência.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Discurso sem rima

Vejo a vida como a ausência.
Condenado que fui
a amar mil mulheres maravilhosas e,
sendo amado,
rejeitá-las desajeitadamente.

Tudo, enfim, é um tropeço
e o ódio é fruto da mágoa.

A mesma mágoa que nasce da discórdia.

Só a navalha vale o desafio.

Pedido do avesso

- Se não fosse por mim, tu casaria comigo, com certeza.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Boas Novas - Cazuza

Poetas e loucos aos poucos
E Cantores do porvir
E mágicos das frases
Endiabradas sem mel
Trago boas novas
Bobagens num papel
Balões incendiados
Coisas que caem do céu
Sem mais nem por quê

Queria um dia no mundo
Poder te mostrar o meu
Talento pra loucura
Procurar longe do peito
Eu sempre fui perfeito
Pra fazer discursos longos
Discursos longos sobre o que não fazer
Que é que eu vou fazer?

Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!

Direi milhares de metáforas rimadas
E farei
Das tripas coração
Do medo, minha oração
Pra não sei que Deus "H"
Da hora da partida
Na hora da partida
A tiros de vamos pra vida
Então, vamos pra vida

Senhoras e senhores
Trago boas novas
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva
Eu vi a cara da morte
E ela estava viva - viva!

Back to black

- É uma pinta querendo afirmação.
- Não, acho que não. Falei com ela ontem. Me disse que só fica bem quando bebe.
- Será?
- Pois é, não sei.
- Sóbrio, como ela é?
- Chata.

"You love blow,
And I love puff.
And life is like,
A pipe,
And I'm a tiny penny,
Rolling up,
The walls inside."

Pré-TPM

- Tá a fim de quê?
- Pô, pergunta difícil não vale...
- Difícil? Tu é que é difícil! Sempre no muro, porra!
- Eu!?
- O "Senhor Enrolador" em pessoa.
- Peraí...
- Peraí tu! Só estava querendo te agradar, fazer um negócio diferente, que te fizesse bem. E tu vem com essa de "pergunta difícil".
- Tá, tá. Então eu digo.
- Diz.
- Assim, seco?
- Tá enrolando de novo, viu? É sempre assim.
- Tá...
- Deixa prá lá.
- Ah, vem cá... vamos continuar...
- Não quero mais.
- ?
- Perdi o clima, foi isso. Tu sempre me enrolando...
- Desculpa.
- Não peça desculpa!
- Mas só tô admitindo que errei...
- Seja homem e não peça desculpa. Vira a cara para mim, me manda a merda, sei lá.
- Só estou querendo evitar uma briga, um bate-boca, mas...
- Não vais conseguir!
- Tô vendo!
- Outra de enrolador.
- O que eu fiz agora?
- Nada, como sempre. O pior enrolador é o que quer acabar com a discussão.
- Olha, vai dormir que não tem mais nada hoje mesmo. Tô indo para o sofá.
- Isso, enrolador. Foge.

Do outro lado do centro

- Tô descendo, então.
- Vou contigo, pode ser?
- Claro! Mas tô a pé.
- Não dá nada: meu tênis é novo.
Riram com desonoestidade - afinal, era uma piada sem graça.
Em seguida, engataram uma conversa como se nunca tivessem se visto. E, sem surpresas, encontraram as identidades. As afinidades já pareciam bem antigas quando um longo e quente beijo caiu entre eles.
- Quem sabe tu fica aqui? Tá frio, tua casa é longe, tu estás a pé... - enumerou ela.
- Não tem problema, não quero incomodar.
Não foi um não. Mas ela entendeu como um recuo. Teria feito algo errado?
- Na próxima, vou de carro só para te dar uma carona - prometeu ele tentando recuperar espaço.
- Daí eu vou contigo para onde tu quiser...
- Vai mesmo?
- Claro! Se tô prometendo...
- Então vem hoje.
- Pra onde?
- Ué, um lugar menos frio do que o meio dessa rua.
- Não sei... - disse ela, sorrindo um sorriso de condecendência.
Queria ir, pensou ela. E abraçada na cintura dele, foi.
- Então?
- Então tá.
Foi melhor para ele do que para ela. Ele achava cruel que fosse assim. Ela, decepcionante. Não disseram nada, não queriam dizer. E falar o quê também? Quando o silêncio ficou pesado, levantaram.
- Eu...
- Tudo bem.
- Amanhã...
- Claro. Nos vemos no bar.
- Espera. Eu te levo em casa, tá frio.
- Não precisa. Fica aí. Tô a fim de ir a pé mesmo.
E foi madrugada adentro levando um casaco emprestado e toda a amizade que ainda poderia restar entre eles para queimar em uma caminhada até o outro lado do centro da cidade.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Ele e ela

Grudaram-se quando se viram.
Ele, vermelho. Ela, atual. Mas poderia ser o contrário e ninguém ligaria. Estavam unidos por cores menos aparentes, concordavam.
- Vou pra onde tu quiseres me levar... - ela disse.
Ele entendeu. E se apressou em pensar em tudo. Pensou tanto que ficou calado durante os segundos urgentes em que ela esperava um 'ok' ou pelo menos um sorriso de condecêndência.
- E aí, vamos?
E ela, fria, respondeu.
- Putz, já tenho carona...

quarta-feira, 16 de julho de 2008

6/7

Sempre que se encontram, sorriem. Ela, depois ele. Não dá para dar bandeira, pensa.
Bandeira?
Sei lá. Na verdade, queria dar bandeira. Queria que ela soubesse de tudo. Da primeira frase ao último verso, tudo o que fosse seu. Desconfiado, contou partes desiguais para que tivesse saídas e fugas. Ela é esperta. E entendeu.
E os olhos surpresos revelaram-se aflitos, depois contentes. E foram misturando-se aos desafios rompidos para que fossem pulando logo os discursos longos e caíndo, milímitro por milímitro, força e puxão, na cama ou no sofá. Depois foi o chão, as paredes, a boca e suas adjacências, seios, pernas, tudo embretado e quente, pelando, aberto. A mão espalhando o tesão.
Quando reparou num instante que milhares de gostas de suor se formaram na testa dela para no segundo seguinte molharam o cabelo, não tinha mais volta. Eram as horas que passaram ali e mais nada. Os braços já tremiam fracos. Pensou que se dependesse agora das pernas, não poderia andar.
Ir embora para quê?
A casa dele seria hoje e para sempre o corpo dela.

Sobre lápis e tintas

Encontravam-se sempre no mesmo bar que chegou a acreditar que aquele era o único cenário possível para ela. Adiante, uma peturbada e rouca aparelhagem de som impregnava o ambiente com as palavras fortes e inconfundíveis de Cazuza. "Meus heróis morreram de overdose... meus inimigos estão no poder..."
- Antes, eu só escrevia de lápis porque achava que podia ser apagado.
- Curioso.
- Daí foram burradas tão grandes que nem com todo o esforço do mundo poderia apagá-las.
- Exagerado...
- Verdade! Viver de tintas pelo menos me dá a idéia de afirmação.

Megalô

- Deprê?
- É... não sei.
- Pô, mas tem feito uns dias lindos! Sol, gente, vida...
- Não gosto muito de gente que curte o sol, tu sabes. Além disso, irrita minha pele. Putice? Sei lá, pensa o que quiseres. Prefiro não sair muito de casa, não.
- Mas daí a tristeza pega mesmo, cara.
- Não... é o só o velho cansaço da mesmice de sempre. Gosto mais de mim quanto tem alguém bacana por perto, quanto acredito que posso ser mais.
- Mas tu és mais!
- Só de modos artificiais.

Pós "rehab"

"...você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se fosse apenas uma semente e eu a plantasse esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira. É, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira... Mas nunca, em nenhum momento, essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente..."

(Ctrl+C / Ctrl+V de Caio Fernando Abreu, esta madrugada...)