quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O Dé não entende nada

Encontraram-se dia desses no bar de costume, Dé e Raquel. Ele empilhando copos vazios sobre uma mesa solitária. Ela, sorrisos.
- E aí, como vai o senhor?
Sempre o tratava de senhor.
- Bem - disse, mentindo.
Tinha algo estranho ou errado mesmo acontecendo com ele. Não, não seria o estômago ou qualquer coisa no fígado. A cabeça também estava em ordem. Só podia ser a alma inquieta, como de hábito. Além disso, o "senhor" com que era prenominado o fazia sentir-se muito mais velho do que realmente era.
- E contigo?
- Tudo certo. A fim de uma festinha, hoje... sabe onde ir? Tá a fim também?
- Tô.
Mentiu de novo. Dessa vez, tinha motivos para isso. Um par de pernas, uma dúzia de sorrisos e algumas centenas de possíveis beijos insanos como motivos.
- E o que sugere?
- Bom, tem uma festa de aniversário na casa de uma amiga minha, a Nanda. Nada sofisticado. Tudo gente boa, da minha turma.
Tentou falar animadamente, mas não teve certeza de que tenha conseguido. Percebeu o arrefecimento dela quando falou "na casa de uma amiga". Queria dizer que não era sacanagem mas decidiu não mentir de novo. Vai que fosse?
- Se não quiser ir, tudo bem.
- Não, que isso. Tô a fim sim.
Ela sorriu de novo e, dessa vez, ele soube que ela estava mentindo. Fingiu acreditar e decidiu que, aquela noite, mostraria o "repilado cruzado do avesso" que tanta curiosidade provocava nas mulheres.
- Olha, só que tenho que te dizer uma coisa.
- Fala, Raquel.
A apreensão dele fez com que ela se calasse. Por um instante minúsculo, pareceu que ela avaliara os riscos de contar algo ao mesmo tempo grave e perigoso. "Era hora mesmo disso?", pensou. De novo, não disse nada.
- É que queria levar uma pessoa junto.
"Putz", pensou, quase em voz alta. Se bem que não foi preciso: as reações de seu rosto foram tão claras que até o garçom, antes interessado em reabastecer a mesa com novos copos de chopp, recuou.
- Claro - disse ele.
Falso como nota de três.
- Se não der, tudo bem.
Sentiu-se como se tivesse tomado um nó. Agora, já não tinha certeza de que a tal de dor não seria mesmo na barriga. Estava obrigado a incentivá-la para não parecer antipático mas... "putz", pensou de novo. Queria que fossem só os dois. Estavam ruindo os planos do
Se quisesse sair dessa, precisava de uma saída rápida.
- Acho que dá sim. É na casa da Nanda, gente fina ela. Vai adorar que a gente vá. Mas se tu vais te sentir melhor, ligo para ela e pergunto se podemos levar mais alguém.
Grande saída. Insinuara que a decisão não era sua, afinal a casa era a da Nanda. Ao mesmo tempo, se mostrara interessando em contentá-la. Se algo desse errado, não seria culpa dele.
- Tá, então liga - sorriu ela.
Não deu certo. Ela queria que ele ligasse. Era a insistência. Estava irremediavelmente fora dos planos. E essa dor que não passa?
- Alô, Nanda? É o Dé! Olha, tô levando uma amiga e o namorado dela...
A Nanda concordou. Quem fez uma cara feia foi a Raquel ao lado dele.
- Dé, acho que não expliquei direito. A pessoa que vai comigo não é meu namorado. É namorada, a Lu.
O Dé não entende nada mesmo.

Sobre o discurso

- Às vezes, dizer a verdade é puro egoísmo.