sexta-feira, 30 de maio de 2008

Meia Crônica

Acendeu a luz e, de repente, o dia artificial invadira a noite de seu quarto de solteiro. Era a insônia que o visitava de novo, sem licença ou permissão. Os olhos purgavam a inconveniência das horas enquanto a mente mantinha-se em dez mil giros por segundo. Estava acostumado.
Não lavou o rosto, mas viu-se diante do espelho como um completo e inútil desconhecido. Passara horas em volta de um pensamento escorregadio e insistente sobre uma mulher de boca suculenta e espessa, encarnada ou feita de sangue, que roubara de sua vida o sossêgo adormecedor ao contar confissões condecendentes aos sentidos do seu coração perturbado.

Se disse palavra, o que ganhou o vento foi um sussurro. Belos e tristes discursos que soam até hoje como um lamento, recordou.

- Quero um beijo, não te escondo. Mas faz tanto tempo... Pensei que fosse impossível, que não combinávamos, que éramos tão comuns que só mesmo a amizade floresceria na pantanosa e infértil distância que nos afasta... - disse para ninguém em particular.

O que sentia, na verdade?

Desmanchou um a um os castelos de tranqüilidade e segurança de hábito para admitir, pela primeira vez em dez anos, que a paixão voltara a alojar-se em si. Relutou no começo, também é verdade, mas o que fora não tinha volta. E no meio dos entulhos em que se transformaram suas lembranças, sentiu um certo prazer enviezado em amar alguém na distância dos anos.

Altas horas, seu amor exigia a concretude do corpo - o que tacitamente lhe fora proibido. E a crueldade da inexistência se mostrou a ele com o brilho relevante dos amores que acontecem nos planos mais altos da consciência, ou no espírito e não nas ruas, não soube dizer de certeza. Tinha o desejo de viver aquilo de novo, de sentir-se vivo e jovem de novo. Não, não pediria a ela que se entregasse, nem que ao menos o compreendesse. Queria somente o direito consentido de amá-la com a intensidade dos justos e a alma petrificada como um vaso de flor.

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